A infância já não cabe no quintal nem no caderno escolar. Ela foi rifada ao scroll, dobrada no retângulo luminoso das telas, treinada para o impulso e para a recompensa rápida. O que deveria ser silêncio de aprendizado virou ruído invisível de notificações incessantes. O país que já tratou o livro como janela para o mundo hoje empurra suas crianças para o vício do algoritmo e seus velhos para o esquecimento.
O silêncio que antes era intervalo entre histórias ou descanso após a brincadeira agora é um silêncio preenchido pela ausência: corpos curvados sobre celulares, olhos fixos em rolagens infinitas, identidades formadas pela métrica de curtidas. Não é apenas uma transformação tecnológica, mas uma mutação cultural que atravessa família, escola, política. A infância perde o direito ao tempo, o adulto perde a profundidade, e o idoso perde a memória de ser lembrado.
No meio dessa encruzilhada está Ryoki Inoue: autor de mais de 1.283 livros, reconhecido como o escritor mais prolífico do mundo, que preencheu a vida com disciplina diária diante da página em branco. Hoje, invisível num Brasil distraído, ele se tornou metáfora de um país que prefere deslizar telas a virar páginas.
O cassino no bolso: o “Tigrinho”
Entre os fenômenos mais cruéis dessa economia da atenção estão os jogos de azar digitais, como o famigerado “Tigrinho”. Disfarçado de passatempo inofensivo, ele promete riqueza rápida e fácil, mas entrega compulsão, dívidas e desespero. Funciona com a mesma lógica dos cassinos físicos: reforços intermitentes, ganhos ilusórios, frustração crescente. Mas agora está acessível a qualquer adolescente com um celular no bolso, sem fronteiras, sem supervisão, sem limites.
Cada giro da roleta digital é um golpe na esperança. Crianças e jovens são atraídos pela promessa de transformar centavos em fortuna, mas, na prática, perdem não apenas dinheiro, mas noções de valor, de esforço, de paciência. O vício deixa de ser exceção e se torna rotina: a dopamina vira moeda de troca, a espera deixa de existir, e a promessa da sorte se transforma em pedagogia da ilusão.
O “Tigrinho” não é um jogo; é uma armadilha. Uma armadilha desenhada para capturar a vulnerabilidade psíquica de quem ainda não tem estrutura para resistir. Uma pedagogia às avessas: em vez de ensinar resiliência, ensina dependência; em vez de transmitir esperança, fabrica frustração.
Influenciadores e a pedagogia da ostentação
A engrenagem ganha reforço com influenciadores que exibem ostentação como se fosse manual de vida. Figuras como Hytalo Santos, entre outros, transformam carros importados, mansões alugadas e viagens patrocinadas em conteúdo consumido como aspiracional. A mensagem é clara e repetida: sucesso é ostentar, felicidade é mostrar, valor é exibição.
Essa pedagogia da ostentação encontra terreno fértil numa juventude treinada para a comparação. O feed se torna a régua de autoestima, e cada curtida vale mais do que a conversa à mesa. O resultado é devastador: jovens aprendem a desejar o inalcançável, a medir a própria vida pelo reflexo das vitrines digitais, a acreditar que a intimidade não vale se não for publicizada.
A consequência não é apenas psicológica, mas social. Uma geração inteira passa a ver o outro como plateia, não como companhia; como rival, não como parceiro. O convívio comunitário se dissolve em competição de métricas. E quando a vida é reduzida a espetáculo, o fracasso se torna invisível, mas não menos doloroso.
Cultura da pressa, política da distração
A atenção fragmentada não atinge apenas a juventude. Adultos também desaprendem a esperar, a ler em profundidade, a sustentar um diálogo sem olhar para o celular. O tempo contínuo, que permitia transformar informação em conhecimento e conhecimento em sabedoria, foi picotado em notificações. O resultado é uma cultura do raso, em que o silêncio é visto como vazio a ser preenchido, e não como espaço de reflexão.
Esse curto-circuito cultural repercute na política. Debates democráticos se reduzem a frases de efeito, programas de governo se transformam em memes, a performance substitui o conteúdo. A pressa se torna forma de poder: quem captura mais segundos de atenção governa narrativas, molda desejos e cria dependência.
O efeito é corrosivo: quando a democracia vira espetáculo de curtidas, o espaço público se esvazia de sentido. O país adoece porque a pressa desmancha os vínculos coletivos e a distração se torna forma de controle.
Entre infância rifada e velhice esquecida
É nesse cenário que a história de Ryoki Inoue se ergue como metáfora. Um escritor que fez da disciplina diária sua forma de vida, que transformou silêncio em criação e tempo em legado. Hoje, acamado e quase invisível, representa o oposto da lógica atual: a paciência de quem construiu mais de mil narrativas contra a pressa de uma sociedade que mal sustenta um parágrafo.
Se as crianças são rifadas ao algoritmo, os velhos são rifados ao esquecimento. O início da vida perde a chance de aprender; o fim perde o direito de ser lembrado. A infância é roubada pela dopamina; a velhice é roubada pela indiferença. Nesse intervalo, o país perde sua memória e compromete seu futuro.
Sombra azul: a nova orfandade diante da tela
Não há neutralidade possível. O enfrentamento exige ação coletiva e íntima. No plano público, significa aprovar leis que protejam crianças e adolescentes em ambientes digitais, limitar práticas predatórias como jogos de azar online, responsabilizar influenciadores que transformam ostentação em referência de vida. Significa regular plataformas que lucram com a compulsão, impor transparência a algoritmos, frear a pedagogia do vício.
No plano íntimo, significa recuperar práticas simples: desligar o celular à mesa, devolver à infância o direito ao brincar livre, ao corpo o direito ao descanso, à família o tempo de conversa. Significa cuidar de quem escreveu nossa história, para que não desapareça no ruído das distrações.
Entre o prazer rápido e o convívio duradouro, há uma escolha. Entre a dopamina do clique e o silêncio de uma biblioteca, há uma decisão política, cultural e íntima. O último capítulo ainda não foi escrito. Mas se continuarmos a terceirizar infância e memória às plataformas, será uma história curta demais e talvez sem leitor.
Fonte: Jornalismo Colaborativo