Escritor recordista da literatura é homenegeado no centenário da imigração japonesa no Brasil

A história da imigração japonesa no Brasil ganha carne e alma ao ser narrada por quem carrega no DNA a disciplina do bushidô e, na trajetória, a cicatriz das travessias forçadas.

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Posted on junho 19, 2025, 12:55 pm
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Do arroz ao papel, do bisturi à caneta: a saga visceral da família Inoue como espelho da imigração japonesa no Brasil

Por ocasião dos 117 anos da chegada dos primeiros imigrantes japoneses ao Brasil, relembramos, por meio do testemunho singular de Ryoki Inoue — o autor mais prolífico do mundo e descendente direto de imigrantes —, uma história que vai além da integração: trata-se de resistência silenciosa, adaptação forçada e construção profunda de identidade entre dois mundos.

O navio atracou. As roupas não serviam. O arroz não valia. Mas as raízes estavam lançadas.

No porto de Santos, em 1912, a segunda leva de imigrantes japoneses desembarcava no Brasil. Entre eles, Harema Inoue e Kanetiyo Kira, cujas trajetórias condensam uma síntese brutal e poética do que foi a experiência de milhares de famílias nikkeis. Ele, ex-cadete da Marinha Imperial, contemporâneo de Yamamoto. Ela, herdeira de linhagem samurai. A mudança de era no Japão os empurrou para um novo mundo, onde o trabalho no campo substituía a honra ancestral, e onde sapatos ocidentais velhos foram impostos como símbolo de aceitação social.

Essa travessia não foi só física. Foi cultural, simbólica, e muitas vezes cruel. O arroz que produziam não encontrava compradores. Faltava mão de obra, chovia precariedade e sobrava silêncio. Para sobreviver, Kanetiyo produzia papel de arroz artesanal — o mesmo papel que, décadas depois, seria usado em obras da artista plástica Nicole K, esposa de Ryoki Inoue. Arte feita de passado comprimido.

Da terra vermelha à caneta: o legado dos Inoue

O destino inicial da família foi o noroeste do Paraná, e depois o interior de São Paulo — Cerqueira César e Cotia. Como tantos outros, os Inoue plantaram, colheram, mudaram. Mas também estudaram, resistiram, persistiram. Um dos filhos, Gervásio Tadashi, tornou-se presidente da Cooperativa Agrícola de Cotia. O outro, Ryoma, formou-se em medicina e casou-se com La Salette Alpoim, professora, filha de cafeicultores da tradicional família Arruda Camargo. A mistura entre o Japão e o Brasil profundo não se deu sem conflito — mas deu frutos.

Ryoki nasceu em 1946. Viveu o pós-guerra entre os sanatórios de Campos do Jordão e as fazendas de Taubaté. Dividido entre o concreto da metrópole e a poeira do campo, cresceu entre a disciplina dos tatames de judô e as histórias contadas à mesa. Tornou-se médico como o pai, mas desistiu após constatar, na carne, a desvalorização do ofício. Optou por escrever — inicialmente para sobreviver, depois por vocação. O Guinness reconheceu: Ryoki Inoue é o autor mais publicado do planeta. Mais de 1.000 títulos, diversos pseudônimos, e uma obra que também serve de espelho para o Brasil mestiço.

Entre a espada e o teclado: o espírito do samurai reencarnado

A biografia de Ryoki Inoue não é apenas uma anedota curiosa sobre recordes literários. É a prova viva de que os ensinamentos milenares japoneses — disciplina, perseverança, respeito — sobreviveram à travessia, ao preconceito, à adaptação forçada. E foram transmutados em palavras.

Ao escrever sobre samurais, Ryoki resgata a história de sua própria avó, descendente direta dessa casta. Ao criar o personagem Mário Kiyoshi Nogaki — um James Bond mestiço — para leitores dekasseguis no Japão, devolve às novas gerações o orgulho da identidade híbrida. Ao viver em Gonçalves, entre o leite da vaca e a palavra escrita, realiza o ciclo do imigrante: plantar, colher, narrar.
E tudo isso sem nunca ter pisado no Japão.

117 anos depois, o que significa ser descendente?

No Brasil de 2025, a imigração japonesa é celebrada com flores de cerejeira e cerimônias protocolares. Mas a história da família Inoue lembra que ser descendente é carregar no corpo as cicatrizes do deslocamento e, na alma, o compasso do tempo dos dois mundos. É ser filho da terra adotiva, mas herdeiro de uma cultura que ensina a respeitar o invisível, a cultivar o silêncio e a seguir — mesmo sem aplauso.

Ryoki nunca buscou reconhecimento internacional. Mas ele veio. Porque o que ele escreve não é apenas ficção. É testemunho. É memória que sangra nas entrelinhas.

Hoje, ao celebrarmos os 117 anos da imigração japonesa, não homenageamos apenas quem chegou — mas quem permaneceu. Quem, como os Inoue, construiu raízes tão profundas que, mesmo misturadas ao solo brasileiro, mantêm viva a seiva da ancestralidade. Entre papéis de arroz, livros de bolso e personagens improváveis, a história de Ryoki Inoue nos lembra que, para certos legados, o tempo não é obstáculo — é solo fértil.


Fonte: Jornalismo Colaborativo / Ryoki Produções

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