Empoderamento da mulher brasileira ganha força nos pés de Marta

Um passeio pelo histórico do futebol feminino no Brasil mostra proibições por lei e registros preconceituosos por parte da mídia

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Publicado em junho 27, 2019, 12:46 am
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Marta perdeu o jogo com a França na Copa America, mas nós mulheres, ganhamos. Para mim e creio que para grande parte das mulheres do Brasil, a visibilidade da jogadora brasileira Marta é simbólica e representa muito mais do que a derrota nos gramados.

Andando pelas ruas de São Paulo, foi possível notar as pessoas entusiasmadas pelo jogo do time feminino e dando maior credibilidade ao futebol jogado por elas, com os bares exibindo seus telões orgulhosos em apresentar a equipe.

Não se trata apenas de minha percepção. A audiência do futebol feminino tem aumentado na TV, assim como o número de espectadores nos estádios. Antes do início do torneio, mais de 800 mil ingressos já tinham sido vendidos para a Copa de 2019 – e as entradas para abertura, semifinais e final esgotaram em 48 horas.

A jogadora Marta, seis vezes eleita pela Fifa como a melhor jogadora de futebol do mundo, aparece como ícone deste início de transformação, especialmente quando resolve assumir a luta da importância pela igualdade de gênero.

Em seu discurso durante a premiação do Comitê Olímpico Internacional da ONU, em Nova York, a jogadora foi aplaudida de pé pela plateia com sua fala sobre o impacto do esporte na vida das meninas e mulheres do país. “Hoje temos uma mulher como a maior goleadora das Copas. Esse recorde não representa só a jogadora Marta, mas todas em um esporte ainda visto ainda muito como masculino”, disse.

A visibilidade da jogadora passa a ser também apoiada na mídia. A revista Vogue Brasil, que costuma produzir suas capas para modelos com estereótipos padronizados, como Gisele Bündchen e Isabeli Fontana, dará a vez à Marta em sua próxima edição, simbolizando algo que pode ser o início dessa transformação. Mesmo que seja, ainda, incipiente, creio ser uma vitória para todas nós.

Com a capa dedicada à Marta, uma mensagem ao nosso subconsciente feminino emite uma afirmação poderosa de que podemos ser e chegar onde quisermos.

A Vogue Brasil será distribuída em julho, mas já temos uma prévia de um dos questionamentos da atleta: “Imagina o quanto eu ganharia e quantos patrocínios teria se tivesse os mesmos títulos, mas fosse homem?, declara.

Ela se refere à discrepância de investimentos que é apostado no futebol masculino em relação ao futebol das mulheres. Seu primeiro salário na Europa foi em torno de 3.000 reais e até hoje, está muito distante de receber as milionárias cifras embolsadas pelos jogadores do time masculino.

Mas porque ainda estamos longe da igualdade de gênero em tantos espaços, e no futebol, ainda considerado um esporte masculino, a questão parece ficar ainda mais evidente.

Futebol é “coisa para macho”?

“Brasil, o país do futebol”. A frase tornou-se um lugar comum reforçado em diversos discursos de representação nacional, estimulado por Getúlio Vargas no Estado Novo como caracterizador da identidade nacional, assim como o samba.

Não era de se esperar que os jogadores masculinos quisessem tomar esta tamanha expressão para si.

Segundo pesquisa da revista Eptic, que abordou o tema da invisibilidade das mulheres no campo de futebol, num contexto sociológico, para o imaginário masculino, o futebol representa o simbolismo da “virilidade” e da sua potência máxima corporal, que ganham representatividade com os homens exibindo seus corpos másculos nos gramados e ganhando toda a atenção para si.

Enquanto isso, para as mulheres, durante a história, houve diversas barreiras e inclusive proibição para as mulheres exercerem o direito de jogar, aprisionando-as no estereótipo de sexo frágil.

Passando pela trajetória do futebol feminino no Brasil, é possível observar registros de que as primeiras partidas de futebol aconteceram no início do século XX. Mas foi na década de 1940 que a prática começou a se popularizar entre elas. Tanto que começou a incomodar.

Foi neste ano que ocorreu um fato marcante que deu início à proibição das jogadoras brasileiras: a publicação de um anúncio no Jornal carioca Diário da Noite feito por uma equipe feminina de futebol que convocava moças entre 15 e 25 anos para compor a equipe e trouxe enorme repercussão para os leitores do jornal.

A visibilidade do anúncio veiculado pela mídia fez com que algumas pessoas “tomassem partido” contrário à causa, sobretudo alguns jornalistas e desportistas brasileiros.

Um senhor conhecido como o autor do “moralismo” na época, José Fuzeira, escreve documento direcionado ao Presidente da República Getúlio Vargas, solicitando “a sua atenção para a calamidade que estava para acontecer com a juventude feminina brasileira”, que suscitou a elaboração de um laudo médico para assegurar a proibição da prática do futebol pelas mulheres.

“O esporte lhe trará defeitos e vícios; alterações gerais para a própria fisiologia delicada da mulher, além de outras consequências de ordem traumática, podendo comprometer seriamente os órgãos da reprodução (ovário e útero)”, dizia o laudo.

O discurso reforçava o desejo de manter a mulher para funções “reprodutivas” escondido de preocupação com seu o bem-estar, numa tentativa de cobrir o temor da subversão de papéis e da perda de espaço nos gramados com o avanço do time feminino no esporte, além da abertura que o fato suscitaria para que mulheres avançassem em outros campos além do espaço doméstico.

A proibição durou até 1979, e só no ano de 1983 a liberação do futebol feminino no Brasil junto com a formulação de um estatuto específico, que impunha com algumas limitações como o tempo menor de partida, chuteiras adaptadas e campo menor.  Cogitar tal fato nos dias de hoje, só corrobora com a tese do histórico machista do esporte.

Na mídia, o futebol feminino ganhava alguma visibilidade na imprensa, vez ou  outra, mas as reportagens destacavam muito mais a sensualidade das mulheres do que suas performances em campo.

Em 13 de julho de 1984, a edição da revista Placar destacou o futebol feminino com a capa para a jogadora Vandira, volante do time Pinheiros do Paraná. A imagem estampada evidenciou a exposição da sensualidade feminina pelos veículos de comunicação dos anos 1980.

Esses são apenas alguns esboços que demonstram o quão dificultoso foi para as mulheres ganhar espaço nesta modalidade esportiva.

É justo afirmar que Marta merece ser reverenciada em sua atitude de manifestar o feminismo e a necessidade de abrir caminho para outras mulheres no futebol e em todos os campos de atuação.

A ONU tem a meta de promover a total igualdade de gênero até 2030, com estímulos em atividades diversas para que esta ação se concretize, inclusive no futebol.

Enquanto isso não acontece, posso dizer que ganhei potência com a maior visibilidade de Marta e com sua coragem em posicionar-se.

E o que é melhor. Eu que não ligava muito para futebol, vou passar a ficar atenta nos jogos. Eu me sinto representada.


Fonte: Jornalismo Colaborativo