As recordações que Dostoiévski guardou de Paris são surpreendentes, ao mesmo tempo cruéis e algumas incompreensíveis, “É a cidade mais moral e virtuosa do mundo, (…) todos estão contentes e perfeitamente felizes.” Por mais que se esforce não se consegue compreender esta afirmativa. Basófia? Não há como ter certeza. Não se pode, entretanto aceitar que se tratasse de ingenuidade, talvez escrevesse in statu nascendi, por assim dizer.
Recém chegado da Europa, emocionalmente perturbado por ter rompido com a ex-amante, corroído pela culpa de ter deixado a mulher doente na Rússia, agora à morte, com os pulmões tomados pela tuberculose, talvez se deixasse levar pela emoção, talvez.
Podemos apenas especular, o que já é muito. Mas não deixa de ser curioso, certos episódios pessoais referentes a escritores. Eles, mais do que a maioria dos mortais, deixam-nos pistas através dos seus escritos, quando não o fazem em autobiografias, artigos ou disfarçadas na boca de seus personagens. Legam-nos quase sempre uma infinidade de dados, muitas vezes contraditórios ou absurdos, com os quais vamos consumir horas, meses ou anos numa tentativa, nem sempre frutífera de alcançar o que quer que seja parecido com a verdade.
Como conciliar, por exemplo, a interrogação de Dostoiévski diante do corpo de Maria Dmitriévna, sua primeira mulher, morta logo depois de seu retorno da Europa? “Macha repousa sobre a mesa. Voltarei a vê-la um dia?” O quê quereria dizer? Filosofava, é certo, mas também punha em dúvida sua improvável crença numa outra vida?
No Diário de Um Escritor de 1872 vêmo-lo açoitar a crença na existência de almas do outro mundo, com a mesma impetuosidade com que o Grande Inquisidor em Os Irmãos Karamasov recusa aceitar o retorno de Cristo à Sevilha medieval. Ironiza a crença nos espíritos e o faz com o peso demolidor de seus argumentos.
Mais tarde vamos encontrá-lo dialético: “Se a fé na imortalidade é tão necessária ao ser humano (que sem ela chega a ponto de se matar), é porque ela é o estado normal da humanidade. Visto que isso acontece, a imortalidade da alma humana existe sem dúvida nenhuma.”
À medida que os anos passam sua religiosidade parece aumentar na mesma proporção. No seu último romance uma criança interroga Aliócha: “Karamasov, é verdade o que diz a religião, que ressuscitaremos dentre os mortos, que nos reveremos uns aos outros?” E Aliocha responde: “Claro, nós nos reveremos e nos contaremos de novo, alegremente, tudo o que se passou.”
Dostoiévski detestava o ocidente, seus hábitos, religião, cultura, etc., sobretudo comparava-os a uma pretensa superioridade eslava, especificamente russa e detestava em particular os franceses e, mais do que estes, os suíços.
Foi talvez, como bem observou um dos seus biógrafos, o único viajante do século XIX a descrever os suíços como “um povo sujo”. Aos burgueses de Paris reservou uma ode satírica de fazer inveja a Voltaire. “Não se conseguia jamais persuadir um Francês, ou seja, um Parisiense (pois, no fundo todo Francês é um Parisiense) que ele não é o primeiro homem do mundo inteiro. Aliás, ele sabe muito pouca coisa sobre o mundo, fora de Paris.”
Numa carta a Strakhov escreveu:”Poder-se-ia morrer de desgosto. Posso jurar por isto. Um povo que provoca náusea… O Francês é tranqüilo, honesto e polido, mas é falso. Para ele o dinheiro é tudo. Nenhum ideal. Não lhe pergunte sobre convicções, ou mesmo reflexões. O nível de instrução geral é extremamente baixo (não falo dos grandes sábios: afinal não existe tantos, além do que a erudição não é a instrução no sentido que lhe atribuímos). Você talvez rirá de me ouvir julgar assim após somente dez dias, mas… existem fatos que com apenas meia-hora, pode-se constatar e compreender, e que vos demonstra que são possíveis e que existem aspectos inteiros da situação social.”
Nas Notas de Inverno sobre impressões do verão inventou uma série de historietas bem humoradas para ridicularizar os franceses. Numa delas vai visitar o Pàntheon. Não é por acaso que sua piada se passa justamente no local de veneração dos heróis da França. Seu guia no Pàntheon é um velho decrépito, “desdentado”. Ele arrasta Dostoiévski pela fileira de tumbas e diz solenemente: “Eis aqui Voltaire.”; depois uma outra: “Eis aqui Jean Jacques Rousseau.”
Dostoiévski faz ironia com a eloqüência dos franceses. “Não importa o conteúdo do que dizem, para um francês o importante é dizer.”Interrompido na sua catilinária inútil sobre os grandes vultos do Pàntheon, o velho guia se torna aborrecido. Resmunga toda vez que Dostoiévski o interrompe para tecer comentários pertinentes à obra de cada um deles.
Para o guia francês (leia-se: para os franceses), não interessa o que esses grandes homens fizeram, o quê conta é o quê o guia tem a dizer, geralmente banalidades, mas é preciso dizer, em nome da eloqüência, tão cara aos franceses de Dostoiévski.