O Estudante de Física na UNIFEI, Marcos Terra (24 anos) é um jovem que busca observar na natureza o mesmo sentido de descoberta que encontrou explorando exoplanetas com a Astrofísica. Embora, seu objetivo sejam uma pós-graduação fazendo pesquisas nos observatórios do Atacama (SOAR e GEMINI), Marcos não descarta a possibilidade de desistir temporariamente de tudo isso para viajar como voluntário e continuar uma das suas maiores paixões: a fotografia.
Para esse mineiro de Três Corações, o espírito de mochileiro vem desde cedo. Sua infância foi em Conceição dos Ouros, uma pequena cidade no sul de Minas Gerais. Depois mudou-se para Pouso Alegre, Santa Rita do Sapucaí e de Itajubá, iniciou novas aventuras. Entre elas estão, uma viagem ao Chile, outra à Bolívia e também na Argentina.
Mas foi um acidente de carro que tirou a vida de sua irmã, a razão principal para Marcos começar a sua busca pessoal de um estado contemplativo que só a natureza pode proporcionar.
“Isso fez eu perceber a fragilidade da vida e que ela é muito preciosa para simplesmente ser vivida sem sentir aquele frio na barriga, aquilo que te faz sentir realmente vivo.”
Recentemente, ele venceu o Desafio Expedição na Montanha que é um concurso fotográfico organizado pelo site TemporadadeInverno.com em parceria com a rede de Jornalismo Colaborativo. Sua foto da Cordilheira Huayhuash foi eleita a melhor entre os mais de 200 inscritos na primeira edição.
E para tentar descrever o que essa imagem representa, entrevistamos Marcos Terra que relata com exclusividade para o Jornalismo Colaborativo sua aventura de 300 km percorridos em duas semanas a mais de 5000 metros de altitude.
JC – Quando surgiu o seu interesse pela fotografia?
MT – O interesse pela fotografia veio quando eu viajei para a Patagônia no inverno de 2014. Eu vi tantas paisagens surreais lá que simplesmente não existem adjetivos para descrevê-las, e eu precisava que todo mundo visse aquilo, vivenciasse aquilo, e a única maneira de fazer essa ponte foi a fotografia. Então comprei uma câmera DSLR semi-profissional e comecei a fotografar tudo o que via pela frente. Quando a câmera chegou eu tirei quase mil fotos do meu cachorro para começar a entender as congigurações. Parte do meu conhecimento em fotografia advém das observações nos telescópios do Pico dos Dias. A estrutura e as configurações de um telescópio são exatamente as mesmas da fotografia, o que muda são as dimensões e o propósito.
JC – Como foi o planejamento dessa viagem que você fez até os Andes?
MT – Quando voltei da Patagônia eu estava pesquisando alguns outros trekkings na América do Sul e encontrei o Huayhuash Trek na internet. Eu simplesmente não acreditei nas fotos que eu vi. Logo menos mandei um email para duas agências para saber dos preços e foi uma das maiores desilusões da minha vida, mil dólares. Eu nunca teria mil dólares para gastar em uma trilha de 10 dias. Comecei a procurar por informações sobre o circuito e se era possível fazer sem agência, mas encontrei pouquíssimas pessoas que fizeram sem agência e as informações eram meio obscuras, então eu desisti temporariamente. No fim do ano passado eu assisti o filme “Wild” e foi uma inspiração súbita ver a Cheryl Strayed percorrer os mais de 4000km da Pacific Crest Trail sozinha, e eu pensei: “Se ela consegue, eu consigo!”, e comprei as passagens.
JC – Conte-nos sobre a Trilha Salkantay às Cordilheiras Huyahuash?
MT – Eu cheguei em Cusco e no dia seguinte já iniciei o Trekking Salkantay, que começa em Mollepata e termina em Machu Picchu. Eu não estava nem um pouco aclimatado e no primeiro dia eu saí de 2900m de altitude e caminhei até o Lago Humantay, a 4200m de altitude. A mochila estava com comida para 5 dias e muito pesada, em torno de uns 23Kg, aí a partir dos 4000m eu comecei a passar mal e sentir muita dor de cabeça. Tomei um tandrilax e segui lentamente passo a passo até chegar ao lago, que foi uma sensação inexplicável ao ver aquele azul esverdeado do lago e os glaciares imensos da montanha Humantay, de 5473m de altitude, onde passei a primeira noite. No segundo dia havia a travessia mais alta do trekking, de 4600m, na base da montanha salkantay (6271m), que foi tão difícil quanto o primeiro dia e com uma paisagem novamente inacreditável. Os outros 3 dias foram mais tranquilos pois já não tinha grandes altitudes e a mochila estava mais leve.
Terminando o salkanty eu voltei pra cusco e peguei um ônibus para a cidade de Huaraz, que fica ao oeste do Peru. Cheguei lá 6 da manhã, desci do ônibus e simplesmente não acreditei no que vi, o sol nascendo no meio da Cordillera Blanca e iluminando os nevados de mais de 6 mil metros, além de uma visão espetacular da maior montanha do Peru, o Huascarán, com 6768m de altitude. Só nesse momento eu percebi a magnitude do que eu estava prestes a fazer. Comprei comida, empacotei a cargueira e parti para o Trekking Santa Cruz. Inicialmente eu subi até o acampamento base do Nevado Pisco e então fiz uma travessia não muito usual até a Laguna 69, com 4900m de altitude. O caminho era difícil, com muitas rochas soltas, mas as paisagens valiam cada segundo ali, além de que eu já estava relativamente aclimatado e foi mais tranquilo.
Quando cruzei a parte mais alta e vi a laguna 69 de cima, na base do nevado Chacraraju (6108m), com aquele azul turquesa eu fiquei tão chocado que eu comecei a gritar, não dava para acreditar que era real. No terceiro dia cruzei a segunda parte mais alta do trekking, a Punta Union, com 4750m de altitude e uma paisagem magnífica dos nevados Taulliraju (5830m), Ririjirca (5810m), Quitaraju (6036m) e Artesonraju (6025m), além de 2 lagos que complementam o visual de uma maneira sem igual. O trekking totalizou 75km percorridos em 4 dias e foi o mais tranquilo (o que não significa que foi fácil).
Voltando do Santa Cruz e já aclimatado, no dia seguinte empacotei a cargueira novamente e parti para o vilarejo de Pocpa, onde inicia-se o trekking Huayhuash. Consegui uma carona com um caminhão de boi até o início da trilha e já segui para a primeira travessia de 4700m, com um gelo na barriga e completamente só. Cheguei no lago Mitucocha, na base do nevado Rondoy (5870m) onde iria passar a primeira noite. Armei a barraca, fiz um chá de coca e quando começou a escurecer fui pegar a lanterna e… CADE A LANTERNA? Tinha perdido ela no meio das coisas no hostel e não percebi. Fiquei alguns minutos olhando com olhar fixo para o além com vontade de me matar, tentando me conformar e tentando achar uma solução. E não tinha solução. Organizei e memorizei a posição das coisas na barraca para poder pegá-las no escuro, pois só tinha um isqueiro e nada mais (além do celular mas eu tinha que salvar a bateria por 8 dias para ouvir algumas músicas nas subidas mais difíceis e alarme para acordar antes do sol nascer). Caiu a noite, cozinhei dentro da barraca no escuro e depois sai para tirar algumas fotos do céu, e que céu! A Via Láctea “nasceu” atrás do nevado Rondoy e desenhou sua silhueta no céu noturno, foi inexplicável essa noite. Em torno das 21h a temperatura caiu para -5ºC e eu entrei para dormir. Acordei 4h da madrugada e a temperatura estava -11ºC, com muito vento, foi a noite mais fria de todas, coloquei todas as roupas e fiz um casulo no saco de dormir. Ao amanhecer estava tudo completamente congelado, inclusive o lago. Dai pra frente tentei me programar para chegar aos campings até as 16:30 para dar tempo de armar a barraca e cozinhar antes de escurecer.
No 4º dia do trekking eu fiz a travessia mais alta, o Paso Trapezio, com 5150m de altitude e glaciares que fogem à escala da realidade, e logo após cruzar o paso todo o cenário mudou drasticamente para uma paisagem desértica, sempre com inúmeras lagunas azuis turquesa advindas do degelo dos glaciares. Era 3 da tarde e eu estava muito perto da segunda travessia mais alta do circuito, o Paso San Antonio, com 5050m, e decidi tentar fazê-lo. Tentei escalar algumas rochas para alcançar a trilha sem precisar descer até o início dela, e quando me dei conta eu estava completamente perdido e preso num penhasco de uns 100m de altura, e foi então que eu percebi que eu já estava delirando e comecei a conversar em voz alta comigo mesmo: “Boraaaa, você consegue. O que eu to fazendo? Preciso descer daqui agora! Não, olha o tanto que eu já subi, tenho que continuar!”. E continuei. Já eram quase 17h e eu não tinha terminado de subir ainda, faltavam uns 150 metros de desnível e eu estava tremendo, minha água tinha acabado, não tinha mais forças pra andar, não conseguia respirar direito, sentia muita dor de cabeça e até ouvia o vento falando comigo. O nome disso era ‘febre do cume’, você está ali, do lado dele, mas não consegue aceitar que você não tem condições de alcançá-lo. Nesse momento eu parei alguns minutos, peguei o celular e coloquei ‘Rage Against the Machine’ para tocar no volume máximo. Não sei como mas uma energia súbita veio a tona e eu consegui fazer o Paso, e ver aquela paisagem foi como tomar uma anestesia no cérebro e ao mesmo tempo atingir o nirvana. Desci o mais rápido que pude e consegui armar a barraca ainda antes de escurecer, mas não conseguia me mexer mais de tanta dor em todos os músculos do corpo. Esse foi o dia mais extremo de toda a viagem, com uma elevação em torno de 1500m e uns 17km percorridos. No total eu percorri em torno de 115Km com mais de 6000m de desnível em 7 dias, o que só foi possível devido a aclimatação prévia feita nos trekkings anteriores.
JC – Em algum momento do percurso você pensou em desistir?
MT – O primeiro dia de trilha geralmente era o mais difícil devido ao peso da mochila, que variava entre 20Kg e 25Kg, e ficava mais leve à medida que eu comia as coisas. Para fazer um trekking da magnitude do Huayhuash você deve ir com o físico e psicológico preparado para todas as possíveis adversidades, assim como o equipamento adequado a elas, pois se algo der errado durante a trilha não há a opção de desistir, uma vez que você está no meio do nada, exceto quando alguns fazendeiros locais passam de cavalo por lá. O único momento que passou pela minha cabeça desistir foi quando eu percebi que não tinha lanterna e ainda estava no começo da trilha, mas foram apenas por alguns segundos e logo abri mão da ideia.
JC – Afinal, o que você trouxe na mochila e como se alimentou?
MT – Levei o básico para sobreviver: Uma barraca, um saco de dormir com conforto 0°C e tolerância -15ºC, um isolante térmico, as 3 camadas de roupas (segunda pele, fleece e corta vento), fogareiro, panela, gás, um kit primeiro socorros (remédios, agulha e linha de costura, band-aid, um gel para dor muscular, etc), bastões de caminhar, tripé, câmera, muita comida e um pouco de vinho. Eu tinha comprado algumas comidas liofilizadas aqui no brasil, aí eu deixei elas para o Huayhuash pois era o maior circuito e elas são bem leves. Levei 3 pacotes de comida liofilizada com arroz integral, lentilha, proteína de soja, purê de batata e feijão, e algumas comidas normais como macarrão, umas sopas de saquinho, abacate e limão para fazer guacamole, pães, muitas castanhas e pasta de amendoim com geleia.
Muitas pessoas desacreditaram que eu conseguiria fazer o circuito pelo fato de eu ser vegano, dizendo que eu precisaria ingerir proteína de origem animal para aguentar os trekkings e usando de argumento a atleta vegana que morreu no Everest esse ano. Só queria deixar claro que sim, é mais que possível e que por sinal eu não encontrei nenhum onívoro fazendo o circuito sem agência, apenas um casal canadense vegetariano.
JC – Apesar de se viajar sozinho, você encontrou outros aventureiros?
MT – Nos trekkings Salkantay e Santa Cruz haviam vários grupos, mas as pessoas estavam sempre em uma sintonia diferente da minha, e eu preferia andar só, exceto quando encontrava alguém fazendo também sem agência, onde a gente sempre compartilhava informações e seguíamos alguma parte do caminho juntos, e no fim sempre combinávamos de tomar algumas cervejas.
Todas as pessoas que eu conheci eram extremamente interessantes, algumas viajando sozinha pelo mundo há mais de 10 anos, sem casa, sem carro, e àquela altura sem nacionalidade, apenas com uma mochila nas costas, outras tinham acabado de se demitir e estavam viajando por alguns meses. Me inspirei em cada fragmento de história dessas pessoas que encontrei.
JC – Quais os trechos que você mais tirou fotos?
MT – O primeiro deles foi o Mirador Siula Grande, pois a composição era perfeita, com os picos pontiagudos da cordilheira Huayhuash e seus glaciares imensos, além de 3 lagos magníficos na base das montanhas. Os outros foram Machu Picchu, com uma luz do nascer do sol espetacular iluminando a cidade Inca, Os Glaciares do Paso Trapezio, as Lagunas Carchuacocha e 69, e também do Paso Punta Unión.
JC – O que você trouxe em sua bagagem que poderia compartilhar aqui?
MT – Estar sozinho nas montanhas é um exercício de autoconhecimento e contemplação. São nas situações extremas que descobrimos um lado totalmente desconhecido e às vezes obscuro dentro de nós, que descobrimos nossos limites físico e psicológico e o quão longe temos que ir para sentirmos a liberdade pulsando dentro de nós.
Fazer o Huayhuash solo foi uma experiência praticamente transcendental, pois as dimensões das paisagens pareciam não caber em minha visão e em meus sentimentos. Acordar cercado pelos vales e lagos, com o nascer do sol iluminando os nevados de mais de 6 mil metros e sentir o primeiro raio de sol te aquecendo após uma noite congelante; chegar num pico de 5000 metros, fazer um chá de coca, sentar em uma pedra e apreciar a vista por horas ouvindo apenas o vento sussurrando em seus ouvidos; ouvir o estalo dos glaciares e ver as avalanches de proporções gigantescas que faziam até o chão tremer; tudo era simplesmente inexplicável, tinha momentos que minha única reação era chorar ou gritar, não cabia dentro de mim.
Como nem tudo são flores, uma coisa que me deixou muito incomodado e decepcionado em todos os circuitos foram as agências usarem os burrinhos para carregar mais do que eles eram capazes de carregar: Botijão de gás, barraca, comida, pessoas… Passei por vários burrinhos que carregavam mais de 100kg e não aguentavam andar mais, tentavam sentar ou parar para tomar água ou comer e os homens batiam neles. Não consigo entender qual a lógica de conquistar uma montanha, um trekking, uma travessia às custas de um animal que está sendo praticamente torturado pra você estar lá.
Se você possui alguma experiência em trekkings e um preparo físico mediano você está apto a fazer todos esses trekkings, sendo apenas necessário uma aclimatação prévia. Caso se sinta inseguro é possível contratar um guia, que deve ser aproximadamente 20% do preço para contratar uma agência, e nenhum animal precisa ser explorado para isso.
JC – Comente sobre o trabalho do vídeo resultante dessa expedição.
MT – O “vídeo” na verdade foi uma sequência de fotos aceleradas a 29 fps (29 fotos a cada segundo), conhecido como timelapse. Com essa técnica é possível produzir vídeos de alta resolução mesmo que sua câmera não seja profissional, desde cada foto seja capturada em resolução máxima (RAW).
Fazer os timelapses durante os trekkings foi um desafio, pois para produzir um vídeo de 10 segundos é preciso capturar 290 fotos do mesmo objeto, e, além de gastar em torno de 15 a 40 minutos para fazer as fotos, não havia onde carregar as baterias. A vida útil de uma bateria é de aproximadamente 900 fotos, o que dá em torno de 4 timelapses por bateria, e sem contar que as baterias não podiam ficar expostas ao frio pois a carga dela diminui nessas condições. Desse modo eu tinha apenas uma chance de fazer o timelapse, qualquer configuração errada na fotometria ou na composição não tinha mais volta.
À parte as adversidades, consegui capturar os timelapses apenas com uma câmera semiprofissional (Nikon D5200 com a lente do kit 18-55mm f/3.5), um tripé e 4 baterias, composto com imagens dos 3 trekkings que eu realizei.
Sobre a próxima viagem, Marcos ainda tem incontáveis roteiros em mente, apenas esperando a oportunidade de realizá-los. Segundo ele, até o fim do ano, a Patagônia, é uma forte candidata. Alguém se aventura?
Fonte: Jornalismo Colaborativo
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