Por uma razão qualquer vem à minha mente, nesta hora, a oração inicial de “Iracema”: Além, muito além daquela serra que ainda azula no horizonte…”
Muito além daquela serra está o meu lugar. Sem terras perdidas das montanhas do Quebra-Cangalho, o Ribeirão das Pedras, o Rio da Prata, o Rancho do Abandono, meu suína.
A sensação de uma ausência inexplicável, a saudade de alguma coisa que não conseguimos definir misturam-se a uma alegria de já ter tido a oportunidade de ter vivido momentos que ninguém mais viveu. Uma estranha sensação de nostalgia e de felicidade.
Onze andares abaixo de mim, a cidade de São Paulo, com toda a sua agressiva monstruosidade derrama-se por quilômetros e quilômetros. Massa inerte de asfalto e concreto, que por acaso me dá de comer, mostra a quem quiser ver que ali está para apagar o homem, tomar a sua individualidade, torná-lo não mais que um número de estatística, transformá-lo em mais uma peça de sua engrenagem assassina.
O ruído de trânsito, de motores, de britadoras, de serras de construção, os roncos de todas as espécies que sobem até meus ouvidos atravessando os grossos vidros espelhados da janela, mais parecem os estertores de morte de uma civilização. Gritos desesperados de buzinas, sirenes (que sempre trazem mau agouro, quer seja da ambulância que, desesperada não consegue varar o trânsito para socorrer alguém, quer seja um carro de polícia indo buscar um pobre em desespero, quer sejam os bombeiros correndo para apagar um incêndio que queima, junto com prédios e pessoas, as falcatruas de algum comerciante bem sucedido, ou mesmo a sirene dos batedores de algum político importante que tem pressa de chegar ao seu departamento, pois tem pressa de enriquecer mais um pouco), semelham os últimos lamentos do moribundo que é o homem nessa batalha inglória contra a padronização a que leva a cidade grande.
Por mais esforço que faça, nada se consegue avistar que não seja feito pela mão do homem, seu autodestruidor criador. Somente ao longe, muito ao longe, pode-se vislumbrar, meio apagada pela poluição, acinzentada ao invés de azulada, pode-se entrever a Serra.
Quantos pensamentos consegue criar uma janela…! Quantas recordações!
Foi através de uma janela, porém numa outra situação, noutro lugar e com outra paisagem, que a Lua, bem cheia por trás de uns pinheiros, veio numa quinta-feira mostrar-me o verdadeiro amor. Uma janela pequena, de madeira, numa sala que falava ao meu coração. Ao meu lado, uma mulher-anjo, um ser extra-terreno que conseguiria tomar conta de mim e domar completamente minhas reações.
Lá em baixo, um grande petroleiro encostava. Sobre a mesa, meu cachimbo repousava no cinzeiro e nossos copos vazios eram uma desculpa para as mãos. Nossos olhos se fitavam ao mesmo tempo em que nossas almas se uniam ainda mais. À nossa frente, dois coqueiros tortos cruzavam-se formando uma janela para o mar. Por essa janela, bem lá longe, no alto da Serra, um “U” formado por uma depressão no perfil do espigão parecia ser o portal do corredor da felicidade. Nosso silêncio dizia-nos que estávamos felizes. Pelo menos naquele instante. Nossos corações sabiam, sem que nós realmente o soubéssemos, que seríamos felizes para sempre.
Foi através de uma janela, pequena, de madeira, que alguém atirou para o jardim todas as poucas coisas que eu possuía, juntamente com sua raiva, desespero e frustração. E, com isso, atirou para dentro de mim a certeza de que eu a teria para sempre comigo, para mim, só para mim.
Da janela do hotel, naquela manhã nublada e úmida, podíamos ver uma cidade nova. Na véspera, você dissera, ao telefonara para o meu quarto, que esta seria a nossa cidade. E, por essa janela eu podia sentir, mais do que ver, um futuro de alegrias e de amor que seria (como foi, afinal) só nosso. Constituir família, sedimentá-la, aumentá-la, mostrar ao mundo que é possível ser feliz, mesmo em condições tão adversas.
A grande janela do terraço deixava ver uma paisagem magnífica. O Vale, meu querido e sonhado Vale do Paraíba, estendendo-se até a Serra, a mesma Serra que aqui de fato azula no horizonte.
A diferença é que a “doce Iracema”, de cabelos negros como a asa da graúna e doces lábios de mel, está aqui, ao meu lado, junto a mim.
Lá longe, agora, está só a Serra.
Minha doce e amada Serra.